Assisti recentemente duas adaptações de Madame Bovary para o cinema, uma de 1949, dirigida por Vincente Minelli, outra de 1991, de Claude Chabrol. Os dois são, claro, muito diferentes. Estão separados por quarenta anos, por um oceano (o filme de Minelli é produzido em Hollywood e o de Chabrol é Francês), pelo idioma. Mas há, para um espectador de hoje, uma diferença que eu vou ressaltar aqui.
Vejo no filme de Chabrol uma belíssima sutileza, as angústias e desejos de Emma não são ditos textualmente, mas apenas referidas com elegância e discrição. Na versão de Minelli, tudo é muito mais explícito, as personagens dizem o que pensam, o que sentem, de modo que pouco é necessário ao espectador advinhar, se identificar, se colocar na pele de alguém. Na minha opinião, o ponto central dessa diferença está na localização do espectador-no-texto.
Nick Browne, em "O Espectador-no-Texto: A Retórica de No Tempo das Diligências", disseca uma cena de Stagecouch (do diretor John Ford, 1939), analisando o modo como o especatador se identifica com certos personagens e é colocado dentro do filme. Eu sei que já ultrapassamos a questão de "Câmera invisível", mas ela reaparece na citação a seguir, que é necessária para que eu continue falando das Bovary's:
"O mascaramento e o deslocamento da autoridade narrativa são essenciais para estabelecer o sentido do espectador "no" texto, assim como a proibição [do olhar do ator para a câmera] é essencial para afirmar o filme como uma ficcção independente: disitinto do sonho por ser o produto de um outro, porém passível de ser habitado pelo espectador. O fascínio pela identificação com o persoangem é uma forma de validar o mundo ficcional como um todo articulado. E, como o o espectador ocupa um papel ficcional, é também uma forma de o filme conseguir apagar a consciência do espectador de sua posição. Como produto da leitura do espectador, o sentido de realidade que o filme encena, a impressão do real, protege a explicação que o texto parece dar do narrador ausente."
É importante pra mim, aí, a declaração de que o espectador pode ocupar um papel ficcional dentro de um filme. No exemplo de Stagecouch, Nick Browne aponta para uma pessoa que está no cenário, é um personagem ativo na história, mas no momento está assistindo e fazendo julgamentos sobre o que acontece na cena. É nele que os espectadores estão, ele é o espectador-no-texto.
No Mme. Bovary de Chabrol, vejo a identificação do espectador na própria Emma. Ela é a autoridade narrativa neste filme, o olhar dela é o que muitas vezes guia a nossa experiência e o nosso contato com a história, mesmo haveno uma voz over de narrador que aparece vez ou outra.
No filme de Minelli, a nossa identificação de espectador é claramente colocada no prólogo e epílogo do filme, que retratam o julgamento de Gustave Flaubert (autor do romance), quando do lançamento do livro, que foi acusado de ser uma ofensa a moralidade. Flaubert então começa a explicar para os jurados a história de Emma, e a partir daí é que entramos em contato com ela. A autoridade narrativa, lógico, é do próprio Flaubert, e nós, espectadores, estamos no texto no lugar dos jurados.
E acredito que aí estão centradas as diferenças entre os filmes.