Sunday, November 09, 2008

Narradores, literatura, cinema

Qualquer semelhança...

"Então o Viajante do Tempo começou a contar sua história, tal como buscarei reproduzir. De início ele afundou em sua poltrona e pôs-se a falar como um homem fatigado. Depois, foi-se animando.

Ao escrever isto, sinto agudamente como a pena e a tinta são insuficientes para exprimir a essência, e dou-me conta, mais ainda, de minhas próprias limitações. Creio que você, leitor, lê com bastante atenção. Mas não pode ver o rosto pálido, cheio de sinceridade, do Viajante do Tempo, iluminado pela pequena lâmpada. Nem ouvir as inflexões de sua voz. Você não pode imaginar como a expressão de seu rosto acompanhava as peripécias da narrativa! Quase todos dentre nós que o escutávamos estávamos na penumbra, pois as velas na sala de fumar não tinham sido acesas; só o rosto do Jornalista e as pernas do Homem Silencioso, dos joelhos para baixo, estavam no círculo de luz. A princípiio trocávamos olhares uns com os outros. Mas não tardou que deixássemos de fazê-lo e, totalmente absrovidos, só fitássemos o rosto do Viajante do Tempo."
H.G. Wells, A Máquina do Tempo

Viu?


Sunday, October 19, 2008

Livros, escolas e museus

Vimos na virada entre o XIX e o XX a filosofia e a física quântica ignorarem a distinção entre espaço e tempo, para em seguida ver a imagem perspectivista encontrar de fato o tempo e com um ilusionismo maravilhoso se mover. No mesmo passo uma questionável ciência fincava suas bases para permanecer em nossas cabeças até hoje e além, e que trata do mundo daquilo que nos habita as mentes e, sem o nosso conhecimento, determina nossas decisões e até os nossos mais acidentais tropeços; essa tal Psicanálise, mãe e pai, filha e irmã deste sujeito narcisista de nosso tempo. Tivemos as guerras mundiais e o rádio e a televisão nos bombardeando as cabeças dentro de casa, com as vozes e as caras de presidentes, de palhaços, de varejistas; e houve aqueles que puseram-se a votar, a rir, a comprar, ou a pensar que os três não eram senão um só, o mesmo, uma imagem num tipo especial de espelho que nos colocava sentados, imobilizados, mas de olhos e ouvidos abertos, em toda parte do mundo. Hoje temos diante de nós estas máquinas computadoras, ligadas todas umas as outras pela Internet, em que depositamos infinitas idéias, seja em imagens, sons, palavras. Entramos numa fase em que todo conteúdo é de todos, a transmissão da informação se dá em redes complexas, intricadas, onde cada ponto pode emitir seus impulsos e vê-los reverberar em todos os outros. Logo veremos essa rede se desmanchar não mais em pontos, mas num contínuo infinito. O homem terá criado o seu meta-universo.

Continuo então a traçar as diagonais de Debray. É verdade, como disse Barra/.Ponto (em comentário no post anterior), temos Wiki-Museus dos mais interessantes, com café e biscoito feito em casa. Mas eu defendo o livro. Bem parcial mesmo, defendo porque adoro.
“Quando apanhava um livro, podia abrí-lo e fechá-lo vinte vezes, via muito bem que ele não se alterava. Deslizando sobre essa substância incorruptível, o texto, meu olhar era apenas um minúsculo acidente de superfície, não atraplhava nada, não gastava. Eu, em contrapartida, passivo, efêmero, era um pernilongo ofuscado atravessado pelos clarões de um farol; abandonava a escrivaninha, apagava a luz: invisível nas trevas, o livro continuava cintilando; por si só. Eu infundiria às minhas obras a violência desses jatos de luz corrosivos e, mais tarde, nas biblitoecas em ruínas, elas sobreviveriam ao homem."
(Em As Palavras, de Sartre)
Foi sobre o livro e sobre a pedra da cultura escrita que se criou e se recriou a civilização ocidental, dos textos sagrados que corporificaram a revelação divina, em lugar dos anjos, aos textos seculares que corporificam o saber, em lugar da oralidade.

Acho que vai sair um texto grande, continuo depois.


Saturday, October 11, 2008

O Valor Ontológico de uma Metáfora

Confesso que estou longe de compreender a série de ensaios que Régis Debray colecionou sob os emblemas Acreditar, Ver e Fazer. Me lembra imediatamente: Veni, Vidi, Vici, tríade que pressupõe uma sequência de ações, rumo ao seu ápice, a vitória. Me pergunto se Debray coloca a sua tríade também desta forma, imagino não uma sequência cronológica de ações, mas uma interdependência lógica, sequencial?, de atitudes, no que as atitudes diferem e principalmente no que incluem das ações.

Os textos me deixaram um certo nó no cérebro, porque trazem um pensamento tão plural, eixos de raciocínio cintilantes e nada estruturalistas. O grande prazer do midiólogo é traçar diagonais, diz Debray no prólogo, e isto gera um certo embaraço em quem se acostumou organizar o pensamento em ortogonais. O midiólogo se arrisca em terrenos onde a intelectualidade reluta um pouco em pisar. No artigo sobre Guy Debord: Dispomos de nosso orgulho para baixar o debate. Não pretendemos anucniar a um povo fascinado a verdade de uma época, mas sim trazer algumas luzes para realidades até agora consideradas triviais ou marginais. Os ‘gênios’ não procuram: acham. Nós, tarefeiros, não temos esse privilégio. Ele arroga-se a humildade.

Os artigos de Acreditar, Ver, Fazer costumam percorrer, por círculos tangentes ou diagonais, a relação de nossa sociedade com as imagens, em relação direta com sua mediação física. O escopo é grande, mas vejo algumas linhas a que ele costuma recorrer em vários textos: a dessacralização e secularização do ocidente, e a atual mudança de paradigma no suporte mediador, da terra para a água. Isto é uma metáfora, da mudança de suportes físicos (papel, celulóide, pedra) para suportes digitais, que não têm aspecto algum, e isto, no que resolve alguns problemas, cria uns novos. Aliás, um dos pontos do Acreditar é que se pode muito bem tratar das coisas com seriedade utilizando metáforas.

"Somente o imaginário tem potência de evocação e não de convocação, e as obras capitais que constituíram o patrimônio de uma nação, como da humanidade, não devem ser buscadas do lado dos conceitos, mas sim das formas. Os delírios da pedra, das cores ou das palavras têm a vantagem, sobre a ciência, de poder dar um sentido ao mundo - no que fracassam as construções discursivas; e os mitos permitem mortes mais suaves que os saberes."
(do capítulo 14: Malraux, um magnífico perdedor)

Isso por si só, porém, não é suficiente. O mais belo museu do mundo nunca substituirá um bom colégio. A imagem, a construção metafórica, a abstração, são próprios e definidores do ser humano, da própria civilização. A secularização trazia a promessa de uma espiritualidade laica, em que contemplação, representação, distância, trarizam em si propostas civilizatórias unificadoras. Quanto menos o homem contempla e representa, menos ele tem vida pública, mais ele se torna para dentro de si, sem alteridade, sem sociedade.

Para além destas questões, acredito que o eixo cintilante que guia o livro é a sensação de que o pensamento intelectual, ao lado do que evocam as imagens, não estão se transformando em atitudes. A propriedade indicial, não mais simbólica, da imagem televisiva parece ter embotado o trânsito entre o Ver e o Fazer. E parece que a origem deste embotamento está na decadência do Acreditar na metáfora, na construção simbólica, na representação civil e civilizadora. O primeiro artigo já chama atenção para os Anjos, que levam ao mundo material as intenções de Deus, que é todo espírito. As idéias precisam de um corpo para agir sobre os corpos.

Por isso o material é tão importante, por isso o paradigma do meio água, de onde ascende Afrodite e onde afoga-se Narciso, pode ser tão problemático. Debray enfatiza sempre, é do material que se ocupa o midiólogo, e ele sente falta do homem que pisa no chão e contempla estrada.


Saturday, October 04, 2008

Em que aparecem mais relações entre o Cinema e a Psicanálise.

De algumas coisas que aprendi com The Imaginary Signifier, de Christian Metz:

O cinema é ilusionista, é imaginário, na medida em que é permeado por uma relação de ausência e presença simultâneos. A experiência perceptiva é presente e real, o percebido, porém, é ausente, não passa de um duplo, um reflexo do que um dia o espelho da câmera fixou. O espelho da tela, no momento da exibição, faz-se crer enquanto janela, por meio de um notável jogo de auto-sugestão. Para Lacan, nas primeiras fases da vida, o bebê ainda não aprendeu a diferenciar o seu próprio corpo do mundo, isto só acontece no que ele denomina de Estágio do Espelho. Ao se ver refletido, no colo da mãe, ele começa a perceber, pelos limites de suas sensações, a linha que o separa do externo. A criança então identifica, em primeira mão, a si própria enquanto objeto da visão. Para o indivíduo que ultrapassou o estágio do espelho, torna-se possível a experiência de não se ver no mundo especular da tela, que passa a ser tratado então como objeto. O espectador não participa do percebido, entrando no estado todo-perceptivo, a ponto de identificar-se ao aparato câmera - projetor - tela, uma vez que esta última projeta a sua imagem na retina e é internamente que o filme acaba por construir-se, podendo-se destruir com um mero fechar de olhos. Está aí construído o espectador narcisista: lanço meu olhar sobre as coisas, que só então são iluminadas e trazidas para dentro de mim, onde ganham existência.

Estão em jogo aí elementos das pulsões perceptivas lacanianas. As pulsões sexuais freudianas comportam-se, coincidência?, de modo muito semelhante à descrição do ciclo consumista trazida por Ansart (Mal Estar ou o Fim dos Amores Políticos?): na oposição entre presença e ausência dos objetos de desejo, o próprio desejo, a obtenção de satisfação em maior ou menor grau, um brevíssimo contentamento e, logo em seguida, a renovação do desejo. Nas pulsões perceptivas da visão e audição, presença e ausência dos objetos são simultâneas: os objetos destes sentidos são incorporados ao mesmo tempo em que estão necessariamente distantes do sujeito, e, no caso do cinema, presentes apenas em ilusão. A relação assume um caráter voyerístico que cria o hábito da observação passiva, não só das imagens especulares como também do próprio mundo. O espectador sabe estar diante de uma ilusão ficcional, mas finge e faz-se crer que crê no que vê, fetichizando e identificando o seu aparato perceptual ao fílmico, satisfazendo-se mais quanto mais poderosa é a ilusão.

Basicamente, o fetiche psicanalítico é o ato de colocar um certo objeto no lugar do falo, apaziguando o medo da castração. De acordo com a psicanálise, a criança acredita que todos os humanos têm um pênis e fica chocado ao observar a sua mãe tem uma vagina, e entende que ela na verdade tinha um pênis que lhe foi retirado. Fetichizando certos objetos, a castração, um fato da percepção, é negada, num processo de autosugestão semelhante ao que se dá no cinema, quando aceitamos a ilusão da tela. A potência da magia do cinema faz com que todo o aparato, câmera, projetor e tela sejam objetos de fetiche.


Friday, September 26, 2008

Sonhos em technicollor

Certa vez fiz uma hipótese um pouco furada e saí testando com uns amigos. O jogo era o seguinte:

1. Imagine alguma cena que aconteceu durante o Renascimento Italiano.
2. Imagine alguma cena que aconteceu em 1912

E a minha hipótese era de que, por causa das tradições de representação imagética, a imagem do renascimento seria colorida como um quadro de Rafael, ao passo que a cena de 1912 estaria em Preto e Branco, como um filme dos irmãos Lumiére. Claro que a maioria imaginou tudo colorido, uns poucos responderam como eu esperava. Me saí dizendo que já fizeram filmes (e até novelas da Globo) coloridos que se passavam nessas épocas.

Eis que me deparo com a seguinte passagem, em À Margem de "O Erotismo no Cinema", de nosso amigo André Bazin (Cahiers du Cinéma, abril de 1957):

"Lo Duca, em L'Érotisme au Cinéma, parece ver a fonte do erotismo cinematográfico no parentesco entre o espetáculo cinematográfico e o sonho: "O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do filme, o que em parte explica a menor intensidade erótica do cinema em cores, que de algum modo escapa às regras do mundo onírico."

Não pretendo polemizar com o nosso amigo, a não ser quanto ao pormenor. Não sei de onde surgiu este sólido preconceito segundo o qual jamais se sonha em cores! Não pode ser que eu seja o único a desfrutar desse privilégio! Cheguei além do mais a verificá-lo à minha volta. Com efeito, existem sonhos em preto-e-branco e sonhos em cores tal como no cinema, segundo um ou outro processo. Quando muito, concordarei com Lo Luca que a produção cinematográfic aem cores já ultrapassou a dos sonhos em technicolor. Mas o que não posso mesmo é segui-lo na sua incompreensível depreciação do erotismo colorido (..) Mas o essencial está no onirismo do cinema ou, se se prefere, da imagem animada.

Se a hipótese for exata - e creio que ao menos em parte ela é -, a psicologia do espectador de cinema tenderia então a se identificar com a do indivíduo que sonha. Ora, sabemos muito bem que todo sonho é, em última análise, erótico.
Ora, o tal Lo Duca parece ter criado uma hipótese parecida com a minha. E Bazin chega a afirmar que existem sonhos em preto e branco e sonhos em cores, tal como no cinema. Ponho-me a pensar: quando nasci, Cinema, TV, fotografia a cores já eram coisas normais. Não me lembro de ter tido um único sonho em preto e branco na vida.

Está reforçada a dúvida: nossas construções imaginárias e a elaboração onírica talvez estejam mais ligadas às imagens construídas, às ilusões que temos em vigília, do que com o que de fato enxergamos do mundo "real".

Ele ainda conclui o pensamento: sabemos muito bem que todo sonho é, em última análise, erótico. Sendo bem direto: todo sonho é erótico depois que Freud resolveu que assim seria. Não duvido da consistência da interpretação dos sonhos psicanalítica, mas já se acreditou que sonhos eram em últimas análises, muitas coisas diferentes, já se acreditou que eram os deuses se comunicando.

Cada vez acredito mais que tanto a teoria e o tratamento psicanalítico, de mãos dadas com o cinema, só poderiam funcionar mesmo no homem do século XX. Não compreendo direito o que é causa e o que é efeito, o próprio século XX desqualificou um pouco este modo de pensar (como já falei, de leve, em Deriva I, II e III).

Enfim... Alguém quer me indicar um livro?


Thursday, July 31, 2008

Uma Pequena Nota Sobre O Iluminado (SPOILER)

Assisti O Iluminado esses dias. Soberbo, não preciso nem dizer o quanto o filme é bom. Mas uma coisa me intrigou.


A esposa de Jack é tão esquisitona e faz uma cara de medo tão boa que eu tive vontade, o filme todo, que ele a matasse e esquartejasse, salvando-se apenas o garoto, um final até honesto. Aliás, posso me lembrar da sensação de querer, em um filme, que algum personagem "do bem" morra nas mãos do vilão por ele ser chato, idiota ou estranhinho. E normalmente ele morre mesmo.


Terá sido a intenção de Mr. Kubrick? E dos outros? Alguém compactua ou eu preciso de ansiolíticos?



Thursday, July 03, 2008

Deriva III

Estive escrevendo bastante, numa existência um pouco vampiresca, mas acho que agora já sei o que dizer para concluir (pero no mucho) essa história da Deriva. Eu falava então do mar de tocos e restos em que se transformou a vida urbana, e trouxe o amigo Eco pra falar um pouco de linguagem poética.

Pois.

Esta experiência de urbanidade conturbada e profundamente centralizada no sujeito narcisista aparece na cinematografia nacional desde o crescimento industrial brasileiro, na década de 50, tendo em seus exemplos mais notáveis São Paulo S.A. (1965), de Luís Sérgio Person e, no ápice da descontrução da linguagem fílmica, Bang Bang (1963), de Andrea Tonacci. Neste filme a falta de sentido e de narrativa pessoal é traduzida na forma do filme: não há um enredo coerente possível, as sequências são completamente desencadeadas, os diálogos são absurdos.


A cena inicial do filme já revela a regra que ele vai seguir: um passageiro entra num taxi, manda ele ir pra frente, mas não diz onde quer chegar. Muda as instruções de repente, fala que era pra virar aqui, virar ali, o condutor se irrita, briga com o passageiro, faz o retorno...

Mais tarde, no filme, a mesma cena se repete.

Disse Ismail Xavier, em seu livro Alegorias do Subdesenvolvimento (Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal) sobre Bang Bang:

é da análise da composição de mise-en-scène, assumidas em sua radicalidade formal, que o comentário sobre o mundo se reinstala: o jogo interno, afinal, não pode se fazer em estado de pura abstração e a presença do mundo na imagem e no som traz de volta enunciados sobre o contexto do filme que cabe comentar.
E o que isso quer dizer?, não é mesmo?

Os personagens vão passando por várias situações que não se encaixam. Vão surgindo tentativas de montar uma história, um fio condutor, um caminho, mas essas tentativas são, uma a uma, sabotadas. Quando você acha que está perto de entender que Pereio está sendo sequestrado, vem uma cena dele dirigindo o carro dos ladrões, eles dando tiros para o ar e se divertindo.

Mais Ismail Xavier, pra fechar esse texto (um pouco confuso, me desculpem, mas é a experiência conturbada da vida urbana)

O mundo em que se movimenta o passageiro é um labirinto e só não se faz drama porque sua norma, no plano diegético, é a incosequência. O ar irônico, imperturbável, deste homem comum face ao absurdo das peripécias é resposta que revela certa afinidade com este mundo serial desconexo: ele se ajeita a tudo, abosrve cada recomeço com certo descompromisso. Está e não está. E sua postura de exterioridade face face aos conflitos condensa muito bem a matriz de um anti-herói sem proejto que protagoniza a comédia num mundo em crise, terreno de violência e desastre. Seu à vontade a cada passo atesta sua cumplicidade com as regras, o que o isenta da tensão e desconforto que atinge a plateía às voltas com o quebra-cabeça.
Tem ou não tem tudo a ver?


Thursday, June 05, 2008

Go, Speed Racer, Go!

Quando sai da sessão de Transformers, aproximadamente um ano atrás, tinha uma certeza: era o filme mais empolgante que já havia assistido. Havia humor, efeitos especiais incríveis, ação alucinante, mulheres com roupas decotadas... Tudo aquilo que só um blockbuster hollywoodiano pode oferecer. Cheguei a chamá-lo de "o melhor filme do mundo" tamanha empolgação! Esperava isso das terceiras partes de Homem-Aranha e Piratas do Caribe, mas foi em Transformers que encontrei, um filme de que, a julgar pelos trailers, não esperava muita coisa.

Ontem, em uma decisão corajosa, fui ao cinema assistir Speed Racer no lugar dos fantásticos 3 X 1 do Fluminense sobre o Boca e do Corinthians sobre o Sport. Não existe em mim um pingo sequer de arrependimento. Repito feliz e com empolgação semelhante a de 2007, se não superior: é o filme mais empolgante que já assisti.



Speed Racer é, dos créditos iniciais aos finais, uma imensa paleta de cores transformada em película. Se nos trailers elas me incomodaram, no filme elas se encaixaram perfeitamente. Fantástico, tudo parece ter saído diretamente de um painel de neon. Tudo brilha, acende, pisca, sem medo algum de abusar. Cores primárias, céu cyan no lugar do anil, grama verde puro, vermelhos como só os colorbars são capazes de apresentar. O que Robert Rodriguez fez com o contraste preto e branco em Sin City, Andy e Larry Wachowski fizeram com a saturação das cores em Speed Racer. Absolutamente luminoso!

Mas não fica só nisso. Não é puro visual e ação, como em Transformers. Existe uma ousadia cinematográfica por traz, um jogo divertidíssimo com conceitos clássico da teoria do cinema e uma utilização extremamente criativa de cortinas e fundo verde que faz Speed Racer ter algo a mais. A apresentação dos personagens, logo na primeira cena, é construída de maneira fantástica. Speed correndo contra o fantasma de seu irmão Rex, morto em uma corrida, literalmente, como em um videogame, ao mesmo tempo em que um jogo de flashbacks, integrado perfeitamente pelas locuções dos narradores, mostra a forte ligação entre os dois e as circunstâncias da morte de Rex. Em outra, dois personagens dialogam solitariamente lado a lado, ambos olhando para a linha de produção de carros a frente, enquanto a câmera apresenta diferentes posições do rosto em uma séria de cortinas, ignorando de maneira divertidíssima o clássico conceito de eixo. Cinema pensado, não mera aplicação de formulas.



A trilha e os efeitos sonoros também são geniais. Inspirada no tema original da séria, a trilha é perfeita. Empolgante nas cenas de ação, dramática quando necessária, mas sempre sem sublinhar nada. Não dá dicas ao expectador de como este deve se sentir diante das cenas que assiste. Não se sobrepõem às imagens nem é deixada em segundo plano. Os efeitos são extremamente sutis, explosões soam como explosões, carros batendo soam como carros batendo, derrapagens com derrapagens. Tudo perfeito dentro do universo caleidoscópico do filme.

Gostaria de deixar claro o quão incrivelmente enganado eu estava sobre esse filme, a julgar pelo trailer e pela arte dos cartazes, e fico extremamente feliz em admitir isso. A história se amarra perfeitamente, os atores acreditam nos papéis cartunescos que encarnam, até mesmo o macaco não faz o filme ficar ridículo. Direção de arte e direção geral ousados, adaptação inteligente, efeitos audiovisuais perfeitos e completamente integrados. Speed Racer é técnica e poéticamente perfeito. Certamente um dos melhores filmes que assisti este ano.


Tuesday, May 20, 2008

Deriva II

Eu ia tentar escrever umas coisas, mas elas já estão ditas de maneira muito elegante, por um bom senhor chamado Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados:

"Com uma fórmula feliz, Clemente Greenberg afirmou que, enquanto a vanguarda (entendida, no geral, como a arte na sua função de descoberta e invenção) imita o ato de imitar, o Kitsch (entendido como cultra de massa) imita o efeito da imitação; Picasso pinta a causa de um efeito possível, um pintor oleográfico como Repin (elogiadíssimo pela cutlura oficial soviética do período stalinista ) pinta o efeito de uma causa possível; a vanguarda, ao fazer arte, põe em evidência os processos que levam à obra, e os elege para objeto do seu discurso, o Kitsch põe em evidência as reações que a obra deve provocar, e elege para finalidade da sua operação a reação emotiva do fruidor. Uma definição desse tipo prende-se, fundamentalmente, à tomada de consciência, ora adquirida pela crítica contemporânea, para a qual, dos românticos aos nosso dias, a poesia vem se especificando cada vez mais como discurso em torno da poesia ou das possibilidades da poesia, tanto que hoje em dia, as poéticas parecem terem-se tornado mais importantes do que a obra, não sendo a obra outra coisa coisa além de um discurso contínuo sobre sua própria poética e, melhor ainda, a poética de si mesma."
E, pouco mais à frente,
"A dialética entre vanguarda e artesanato de massa (que diz respeito não só ao Kitsch e ao que não é Kitsch, porém produto destinado a usos práticos, ou correta mediação de aquisições da arte) manifesta assim, seu ritmo inquietante e suas automáticas possibilidades de recuperação. Mas deixa entrever também a possibilidade de intervenções operativas das quais, porém, a última a tentar e a mais mentiorsa é a da restaruação de uma aparente adesão aos valores itemporais de Belo que, ao contrário, via de regra, acoberta a face cômodo e remunerativa do Kitsch."
O próximo é sobre um filme que põe em sentido os pensamentos do Sennet junto com os do Eco.


Sunday, May 11, 2008

Deriva I

A urbanidade é uma experiência permeada pela efemeridade. Já eliminamos, de certo modo, as distâncias, e agora estamos por eliminar, de outro certo modo, as proximidades. On Demand Business, B2B, relações de trabalho flexíveis, ajustáveis a qualquer situação. Tudo é instantâneo e flúido, imagens, sons, projetos, pessoas, vínculos: identidade, caráter.

Esse é o eixo de Richard Sennet em A Corrosão do Caráter. No livro, Sennet entrevista uma série de pessoas que vivem as relações e experiências de trabalho contemporâneas e pensa as extrapolações destas experiências na vida pessoal, social, familiar destas pessoas.

Basicamente, a tamanha flexibilidade necessária ao mundo do trabalho, ao imprescindível crescimento cosntanto do consumo, cria um hábito. Se há cinquenta anos atrás, poderia-se dedicar longamente a um mesmo projeto, hoje, a estabilidade parece caduca. Ser estável é confundido com estar parado, e, onde tudo é tão rápido, precisamos ser dinâmicos, mudar, adaptar, descartar. Aceitamos a nossa descartabalidade e que um esforço que era contínuo e pretendia um resultado possa ser prontamente vendido, interrompido e trocado por outro que eventualmente terá o mesmo não fim.

Acontece que a conquista da confiança demora mais do que a velocidade das trocas e processos de hoje em dia parece permitir, e desta forma vemos uma corrosão exponencial do vínculo, de uma narrativa de vida pessoal. Vive-se constantemente na fronteira, na situação limite, na destruição e substituição continuadas do conjunto de referências que constroem nossa auto-identificação.

Não se pertence. Há uma ausência de lugar para o ser e uma ausência do ser nos lugares. Estamos à deriva num mar de correnteza confusa, oscilante e imprevisível, nos agarrando a tocos e restos.

(E isso chega a algum lugar, em breve).


Monday, May 05, 2008

Sketchbook

Eu, assim como os outros colegas de blog, faço uma disciplina de cinema na Unicamp. Essa disciplina, entre outra coisas, foi responsável por grande parte do material postado neste site, não como consequência direta (trabalhos, artigos e resenhas dos filmes que serviriam de avaliação) mas sim indireta. Nos abriu portas e nos colocou em contato com velhos filmes e velhos diretores, que por sua vez nos levaram a pensar milhares de coisas (vide os últimos textos do Caetano e do André). Esse rascunho de texto abaixo faz parte da mesma leva de pensamentos influenciados, com o diferencial de estar completamente inacabado. Posto-o mesmo assim.

"Por uma feliz coincidência tive a oportunidade de assistir dois filmes distintos de Ingman Bergman na última egunda-Feira. Uma dose dupla de um diretor que até então só conhecia pelo fantástico O Sétimo Selo.

Primeiro veio Sonata de Outono, filme de 1977 ou 78, encontrei as duas referências. Trata de duas mulheres que colocam a limpo todas as suas diferenças e o fazem com muito diálogo. Após aproximadamente 7 anos de afastamento todas as mágoas, medos, amores e ódios internos as duas são furiosamente descarregados na sala da casa. O conflito que permaceu oculto durante todo o relacionamento vem a tona na forma de um dos mais dramáticos diálogos que já tive a oportunidade de assistir. A interpretação das duas atrizes, que vai da mais pura passividada aos mais rigorosos gritos e choros, convence de tal maneira que cheguei a me questionar sobre a sanidade mental delas após as filmagens. Um trabalho extenuante, sem dúvida.

Por volta das 20:30 começou O Silêncio, 1963, que diferentemente do primeiro eu havia planejado assistir. Pesquisei brevemente antes e uma das tags assossiados ao filme era, como já esperava, "very little dialogue". Foram 96 minutos de imagens obsolutamente marcantes. Duas mulheres, novamente, com problemas de relacionamento, novamente, mas que expõem esse conflito basicamente pela montagem cinematográfica. É um exemplo claro de como o cinema significa as coisas pela composição das imagens e a montagem dos planos.

Existem muitos elementos em comum entre os dois filmes. As mulheres como foco central é o mais claro até aqui..."

Douglas


Tuesday, April 29, 2008

A Malvada (All About Eve)


"As grandes paixões, aquelas que chegam de repente, sempre trazem consigo as suspeitas.”
Miguel de Cervantes

A Malvada é um filme de Joseph Mankiewicz de 1950. No elenco: Bette Davis como Margo Channing, Anne Baxter como Eve Harrington, George Sanders como Addison DeWitt e uma ponta de Marilyn Monroe (sua primeira aparição nas telas). Indicado a 14 Oscars, ganhador de 6, incluindo melhor filme.

O filme começa porque há o desejo de investigar "tudo sobre Eve", investigar as circunstâncias de seu repentino sucesso. Na narrativa, uma grande atriz está em crise com seu estrelato, outra almeja consegui-lo. E o que é o sucesso, ser uma estrela? Objeto de admiração, ou devoção, de carne e osso; pessoa que, como todas outras, possui seus defeitos, neuroses, mas as tem escondidas e ignoradas diante da ofuscação pelo mito. Se não através da explicação mítica, de que outra maneira compreender esse tipo de admiração? É necessário colocar nessa discussão a capacidade, e o poder, da percepção do belo, construída culturalmente, mas com uma inexplicável universalidade. O poder modificador que o belo possui é um elemento arterial na narrativa. As formas com que ele age na diegese são as mesmas que notamos existir no meio da indústria cultural.

A primeira imagem que temos de Eve Harrington são suas mãos ocupando quase todo o quadro, dessa forma tornando-se distintas diante de tantas outras que, em seguida, aparecem aos montes aplaudindo a jovem atriz. Na última imagem de Eve, nesse pequeno prelúdio do filme, suas mãos estão congeladas no ar, prestes a receber um troféu como prêmio de melhor atuação. No quadro, congelado por alguns segundos, há, sorridentes, o entregador do prêmio e outro homem que aplaude; flores claras e a atriz agraciada. Suas mãos só receberão tal prêmio no termino do filme. Para possuir o prêmio – prova concreta do sucesso alcançado – é necessário merecê-lo em mãos. E é justamente nesse ponto que o filme é interrompido para a investigação de tudo sobre Eve. Se, já no final, ela tem seu prêmio, é porque, independente da identificação do espectador com a personagem, o entendimento do estrelato, seu funcionamento – meios e fins – está assimilado pela cultura.

O surgimento de uma nova estrela possui dores e prazeres: Eve não consegue o amor que desejava, mas o status que admirava. Não há nenhum motivo responsável pelo seu sucesso além de sua própria vontade, que a fez agir sobre a moral. Não é possível a distinção de nenhuma das personagens como vilões ou heróis, o maniqueísmo falha, pois essa narrativa nos mostra um jogo de interesses próprios formulado sobre uma cadeia, uma indústria, já sedimentada e legitimada pelo público, através de sua adoração do belo.



Sunday, April 27, 2008

Vinil - UPDATED

Um amigo trouxe uma radiola aqui para casa. É engraçado como eu estou totalmente maravilhado com a volta do vinil à minha vida, ausente que ele estava desde a minha infância. Como me sinto feliz e curioso ao trocar o disco de lado e ficar olhando a agulha passar pela faixa. Me parece mágico que exista uma coisa assim, analógica. A agulha passa pelas irregularidades da superfície e daí se origina música! É realmente incrível, por mais que eu conheça toda a ciência do processo, muito melhor do que eu compreendo como um sinal binário pode se transformar na mesma música (o que envolve muito mais abstração, mas por algum motivo não tem graça nenhuma).

E fico aqui apreciando os ruídos e a limitação de ouvir só os discos que eu realmente tenho em casa. E se chega um novo, ah, que alegria!

É engraçado como a experiência do vinil confere ao ato de ouvir Os Doces Bárbaros uma condição especial. Quase uma aura benjaminiana. Aí se vê que o homem tinha razão, e merece ser atualizado sempre, vez que o vinil já é o fruto da reprodutibilidade técnica, mas a reprodutibilidade eletrônica fez girar um outro ciclo de mudanças no inconsciente óptico, na experiência de contato com as peças de arte.

UPDATE - 29/04/2008
Barra/.Ponto comentou:

considere 44100 capturas de som por segundo. considere também uma dinâmica de som de 120db. o que isto significa? que a precisão/dinâmica do som no CD pode ser muito melhor que o som do vinil (dinâmica de 90db, e som análogo na hora de gravar*)
Pois é. No CD é tudo automático, controle remoto, muito mais difícil de riscar e ficar cheio de pipoco no meio da música, não precisa levantar da rede pra mudar o lado do disco. Mas o meu encanto com a volta do vinil à minha casa não derivou da qualidade do som, de modo algum.

Com efeito, uma coisa mudou: costumamos ouvir música digital em equipamentos muito inferiores, caixinhas de som de computador. Eu sei, você pode ter um sistema de som bem legal no seu PC, ou pode ter um tio Jair que fez uma gambiarra e ligou a placa de som no Philips dele e agora baixa todos os discos do Sivuca e ouve bem altão. Não precisa citar exceções, estou falando da regra.

Mas o que me deu grande prazer em ouvir vinis foi justamente todo o ritual, o fato do disco ter uma história por trás de cada risco, cada pipoco na reprodução, de você poder ouvir tanto um disco riscado que já sabe onde estão os pulos. Todos os motivos porque o CD venceu, são todos os motivos porque eu estou adorando voltar a ouvir vinil.


Tuesday, April 15, 2008

Transpondo o debate

Há um tempo tivemos (várias pessoas do blog, e tantos outros amigos) um longo debate travado ao vivo, por comunidade do orkut e por e-mail sobre arte, filmes bons e outras coisas que amamos. O debate foi -está sendo - muito proveitoso e achei prudente trazê-la pra cá. São poucas idéias conlusivas mas muitas intuições e propostas que, se rolar compartilhar com mais gente, que opine em cima e tal, será muito sadio.

Começamos pensando em como classificar um filme como bom ou ruim, e se é possível estabelecer tais diferenças e apartir de onde. Aonde entra o gosto nisso? Eu não gostar de algo que reconheça como sendo bom, é possível? Viagem... mas acho legal. O bom e o ruim seriam então características do objeto em si, ou da relação espectador e objeto?

A grande obra de arte ela necessita de repertório cultural ou é "grande" em si, independendo de backgrounds? No nível da especulação me pergunto se um indivíduo hipotético sem nenhuma cultura audiovisual assistir a um filme que eu considero tremendo, uma das grandes criações da humanidade, como "Noites de Cabiria" qual será a relação estabelecida com a obra? Tudo aquilo que achei tremendo persisitirá? Eu quero acreditar que sim.

Para concluir, e deixar o meu ponto de vista até aqui claro coloco um trecho de algo que escrevi em uma das discussões e que de fato resume o que tem me instigado.

Tentando ser mais claro - to confuso, sou confuso e o tema é confuso - creio que uma grande obra consegue ser excelentemente bem apreciada, e que as conclusões, a chegada às, sei lá, "camadas complexas de significações" é viável a alguém cujo repertório seja hipoteticamente nulo. A apreciação/compreensão existe plenamente naquele que como foi dito vai ao cinema para "curtir" e não está preocupado em "formar/definir/encontrar seu gosto". A grande apreciação da obra, a grande obra independe do domínio de referências - ou mesmo de uma pós-teorização - e de contextos, embora assuma que estes últimos ressignifiquem o objeto. Essa é uma visão minha que é muito ideal, é um idealismo cuja verdade factual pode perfeitamente destrui-lo e tenho plena consciência disso.


Monday, March 31, 2008

Espectador-No-Texto: Respondendo a comentário

No post abaixo, Fanny colocou em questão o posicionamento do espectador no lugar Emma Bovary, no filme do Chabrol. Acho que o ponto central do comentário é o seguinte:

Acho que, de fato, acompanhamos de perto as sensações dela, mas permanecemos na posição de julgamento, um pouco externos, alheios ao que ela sente. Julgando seus passos. A camera vai um pouco distante, e a vemos constantemente como se estivessemos um degrau acima dela.
Fanny, você pode ter razão, mas acho que deixei mal explicado o conceito de Espectador-no-texto de Browne. Pode parecer controverso, mas acredito que as questões de posicionamento de câmera circunscrevem a autoridade narrativa do texto e não a nossa identificação. Em alguns filmes a autoridade narrativa é deslocada para um ou mais personagens, para disfarçar a figura do diretor. Chabrol não faz grande uso disso, em minha opinião. A nossa identificação é com algum personagem que vê as circunstâncias desenroladas assim como nós, e reage a elas psiquicamente. É aí que eu acho que está nossa identificação com Emma.

Talvez, por este ser um personagem já tão famoso e que já foi tão julgado, a posição de julgamento pode caber, mas não foi o que eu, que não li o romance e sabia pouco sobre o bovarismo, senti vendo o filme.

Fique à vontade para falar mais!





Tuesday, March 25, 2008

Espectador-no-Texto

Assisti recentemente duas adaptações de Madame Bovary para o cinema, uma de 1949, dirigida por Vincente Minelli, outra de 1991, de Claude Chabrol. Os dois são, claro, muito diferentes. Estão separados por quarenta anos, por um oceano (o filme de Minelli é produzido em Hollywood e o de Chabrol é Francês), pelo idioma. Mas há, para um espectador de hoje, uma diferença que eu vou ressaltar aqui.

Vejo no filme de Chabrol uma belíssima sutileza, as angústias e desejos de Emma não são ditos textualmente, mas apenas referidas com elegância e discrição. Na versão de Minelli, tudo é muito mais explícito, as personagens dizem o que pensam, o que sentem, de modo que pouco é necessário ao espectador advinhar, se identificar, se colocar na pele de alguém. Na minha opinião, o ponto central dessa diferença está na localização do espectador-no-texto.

Nick Browne, em "O Espectador-no-Texto: A Retórica de No Tempo das Diligências", disseca uma cena de Stagecouch (do diretor John Ford, 1939), analisando o modo como o especatador se identifica com certos personagens e é colocado dentro do filme. Eu sei que já ultrapassamos a questão de "Câmera invisível", mas ela reaparece na citação a seguir, que é necessária para que eu continue falando das Bovary's:


"O mascaramento e o deslocamento da autoridade narrativa são essenciais para estabelecer o sentido do espectador "no" texto, assim como a proibição [do olhar do ator para a câmera] é essencial para afirmar o filme como uma ficcção independente: disitinto do sonho por ser o produto de um outro, porém passível de ser habitado pelo espectador. O fascínio pela identificação com o persoangem é uma forma de validar o mundo ficcional como um todo articulado. E, como o o espectador ocupa um papel ficcional, é também uma forma de o filme conseguir apagar a consciência do espectador de sua posição. Como produto da leitura do espectador, o sentido de realidade que o filme encena, a impressão do real, protege a explicação que o texto parece dar do narrador ausente."

É importante pra mim, aí, a declaração de que o espectador pode ocupar um papel ficcional dentro de um filme. No exemplo de Stagecouch, Nick Browne aponta para uma pessoa que está no cenário, é um personagem ativo na história, mas no momento está assistindo e fazendo julgamentos sobre o que acontece na cena. É nele que os espectadores estão, ele é o espectador-no-texto.

No Mme. Bovary de Chabrol, vejo a identificação do espectador na própria Emma. Ela é a autoridade narrativa neste filme, o olhar dela é o que muitas vezes guia a nossa experiência e o nosso contato com a história, mesmo haveno uma voz over de narrador que aparece vez ou outra.

No filme de Minelli, a nossa identificação de espectador é claramente colocada no prólogo e epílogo do filme, que retratam o julgamento de Gustave Flaubert (autor do romance), quando do lançamento do livro, que foi acusado de ser uma ofensa a moralidade. Flaubert então começa a explicar para os jurados a história de Emma, e a partir daí é que entramos em contato com ela. A autoridade narrativa, lógico, é do próprio Flaubert, e nós, espectadores, estamos no texto no lugar dos jurados.

E acredito que aí estão centradas as diferenças entre os filmes.


Monday, March 24, 2008

o não dito

Reassisti nesses dias "onde os fracos não tem vez". É engraçado o espanto de alguns quando você diz que foi assistir a um filme de novo, no cinema. Sem dúvida grandes filmes resistem a todas "assisstidas" possíveis, e a sensação de deliciamento e de entrega total àquele mundo persiste - aliás o único critério que consigo ter para classificar um filme como bom ou ruim é ver se ele aguenta quantas vistas forem necessárias. Dessa vez, por já não precisar ficar dividindo atenção com as legendas pude me dedicar totalmente àquela tempestade de imagens.


O que me encanta em "onde os fracos..." é a questão do jogo que surge e que é alimentado por algo indizível, por uma força que simplesmente está lá. O que seduz Llewelyn Moss não é a ganância, ele fica com a mala de dinheiro mas não o gasta. De primeira pensariamos o óbvio " cata essa grana e foge, vai pra outro país... vaza!!!". Mas não. Tal hipótese não é sequer cogitada, entra nos inúmeros "não ditos" do filme. Abandonar o jogo não é uma alternativa.

O "alarme" que acompanha a maleta de dinheiro realça essa idéia de brincadeira e é algo que dá um clima surreal à história, o o jogo violento e sangrento não passa de um "quente"ou "frio" para homens crescidos no qual, a briga, a busca pelo adversário, a fuga que sempre deixa rastros e tudo que envolve a preparação para o conflito são elementos muito mais interessantes do que a próprio resolução do conflito, que passa pelos nossos olhos e se não estamos bem atentos quase perdemos. Anton Chigurh (J. Barden) não poderia deixar de matar Carla Jean Moss (Kelly Macdonald), não se tratava nem tanto de uma vontade dele mas da simples obrigação de cumprir uma promessa, de seguir as regras de um jogo elaboradas por ele e por Llewelyn, são regras muito claras para os dois e todos os outros que acabam entrando na história são incapazes de perceber... o sherife, o mercenário, a esposa.



Carla Jean Moss, interpretada por Kelly Macdonald


Numa história de homens fortes surge Carla Jean essa personagem feminina que parece ser a mais próxima de saber tudo o que está acontecendo. Tem uma devoção plena ao marido mas está longe de qualquer passividade. Entende o seu papel no jogo mas é incapaz de alterar o andar das coisas. Quando tenta é sem sucesso. É um personagem fascinante e que compõe esse retrato de um oeste feito de vastos horizontes, de probabilidades múltiplas, mas em que o acaso ainda exerce sua força plenamente e compreender o não dito é fundamental.




Thursday, February 28, 2008

Eisenstein III (com uma boa dose de Griffith)

No meu último post, fiz um breve comentário sobre como o cinema pode tentar se construir de modo a tornar esta construção invisível:

"a técnica cinematográfica funciona como veículo para a história e ele não deve ser percebido, o espectador deve construir espaço e tempo coerentes onde a história vai parecer contar a si mesma."

É claro que esta construção do espaço-tempo está intrinsecamente ligada à montagem e ao estabelecimento de certos códigos já tão costumeiros que passam sem estalar na percepção: fragmentação de uma cena em planos gerais e outros mais próximos, montagem paralela, montagem de continuidade, planos de linha de olhar, plano e contraplano, etc...

Essas técnicas estavam em desenvolvimento e experimentação nas primeiras décadas do cinema, entre 1890 e 1920, em filmes europeus e norte-americanos. Apesar de ter sido uma caminhada longa e coletiva, DW Griffith publicou um anúncio num jornal americano dizendo ter sido o inventor dessas técnicas, e muita gente acreditou nisso por muito tempo, inclusive o nosso amigo Eisenstein.

Em seu artigo “Dickens, Griffith e Nós”, Eisenstein afirma que o mais poderoso fator na captividade emocional, da obra de Griffith estava no seu método de montagem, e que este método havia chegado a ele através da obra do escritor Charles Dickens. É chamada atenção no artigo para o seguinte trecho:


"Ele carregava a chave no bolso; e levou a caixa para sua mesa e a abriu – tendo
previamente tracando a porta do quarto – com a mão bem acostumada."

A passagem mostra como, já na literatura, era possível narrar eventos de uma maneira não-linear. Foi justamente este o argumento de Griffith junto aos executivos da Biograph, onde ele produzia, quando eles lhe disseram que não se poderia contar histórias desta forma. Provou-se que se pode.

No mesmo texto, Eisenstein exalta a contribuição de Griffith para o desenvolvimento do cinema soviético, seu herdeiro, onde, segundo ele, a montagem teria o seu uso “total, completo e consciente” e “o reconhecimento mundial”. É particularmente interessante o fato de Eisenstein associar, e pagar tributo, ao cinema norte-americano, na figura de Griffith, o seu cinema e o cinema soviético, que teve o seu crescimento e amadurecimento intrinsecamente ligado aos interesses políticos do Estado socialista soviético, em um texto escrito em 1943, pouco antes do término da Segunda Guerra Mundial e da divisão política do mundo entre os blocos capitalista e socialista e das tensões da guerra-fria que tornariam difícil de imaginar que um russo elogiaria um norte-americano desta forma.

Capiche?


Wednesday, February 20, 2008

Ainda por cima o filme é ruim.

Assisti hoje com André Menezes (que também escreve aqui) e mais alguns amigos, o novo Elizabeth: The Golden Age. Olha, o filme é péssimo. O diretor Shekhar Kapur consegue estragar até os excelentes Clive Owen e Cate Blanchett, seus personagens ficam fracos, inconsistentes. A editora Jill Bilcock parece ter depositado um punhado de idéias ruins, algumas tentativas de montagem métrica, intelectual, uns planos fantasiosos, uma trilha sonora intermitente que irritava... Mas não foi nem isso que mais me incomodou.

Assisti numa sala de cinema que aparentemente tinha algum defeito no som, algumas caixas oscilavam bastante de volume, prejudicando bastante a ambiência do som 5.1 e me fazendo lembrar quase o tempo todo que eu estava numa sala de cinema.

Discutimos isto no obrigatório chope pós-cinema: Sim, existem filmes que querem deixar os aspectos de sua construção, de sua fabulação, completamente evidentes, mas este é um daqueles em que é necessário imergir, esquecer de si mesmo e viver o filme como um sonhador vive o seu sonho. É como se a sua cabeça fosse a sala do cinema, e você vê as coisas se desenrolarem diante dos seus olhos como se elas estivessem ali a acontecer porque acontecem, simplesmente.

É uma característica do cinema dominante: a técnica cinematográfica funciona como veículo para a história e ele não deve ser percebido, o espectador deve construir espaço e tempo coerentes onde a história vai parecer contar a si mesma.

Por isso que eu não gosto de ver filme no computador, por isso que eu pago alegre o meu ingresso do cinema: é que nem comparar coca-cola na garrafa de vidro com garrafa pet. Mas dessa vez o Kinoplex decepcionou.


Monday, January 28, 2008

If life were only like this...

Sylvia Colombo publicou uma crítica ao filme "Meu nome não é johnny" que vem dando o que falar. Mas só que falar mesmo porque o texto da senhora é de uma pequenez intelectual de dar nojo, foi assistir ao filme lotada de parâmetros e regras e como o filme não se encaixou nessas predisposições da jornalistas ela decide atirar pra todo lado. Diria o professor Mauricius Farina: jornalismo é uma faculdade ótima né, você estuda 4 anos e sai sabendo tudo de culinária, cinema, política, economia, etc.   

Ela já começa o texto escrotizando: A pior produção do cinema brasileiro desde a fraude de "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", "Meu Nome Não É Johnny" atingiu nesta semana 1 milhão de espectadores no Brasil. (...) Era de se esperar pelo menos um pouco mais de rigor crítico por parte das platéias. O público é então um bando de ignorantes que precisam ser iluminados pela grandiosa sabedoria de intelectuais como Sylvia e seus colegas de "Ilustrada". Os faróis da cultura basileira. 

Na visão dela, Mauro Lima teria apenas plagiados diversos filmes, e diretores: Tarantino, Beto Brant, Hector Babenco e outros entram nessa lista. Poderia ser um caminho de análise mas não se sustenta.  A certa altura, há um diálogo, conversa fiada, entre dois personagens que confundem Tarcísio Meira e Francisco Cuoco. Seria gracioso se não fosse uma verdadeira cópia de um recurso usado por Tarantino _sacar fantasmas do esquecimento e transformá-los em referência cult. Decretou-se: a partir de agora qulquer um que se referir a atores antigos são plagiadores de Tarantino. Absurdo. Além disso é necessário um exercício de abstração bastante grande em estabelecer paralelos culturais Brasil-Eua e mesmo feito isso colocar os dois "globais" num universo que se relaciona com o de referências de Tarantino não tem nada a ver. Tarantino não quer tornar pessoas que estão esquecidas novamente famosas para torná-las ícones cults ou o que quer que seja, mas porque fazem parte de um universo muito caro a ele. Um universo de filmes b, popularescos, blaxploitations, slascher movies etc., universo este oposto aos dos galãs Tarcísio Meira e Francisco Cuoco.

Sylvia foi querendo ver um filme ruim e acabou, dentro de sua cabeça, tendo um filme ruim. Queria uma coisa esquemática mas não teve. Acusa o filme de um moralismo, mas ele não existe. Apesar do marketing do filme vender a idéia de uma conscientização isso é  uma estratégia de venda do produto e que por bem não se verifica na obra. João não se "perde" nas drogas , ele se diverte com ela, ele vive com elas e tem uma grande curtição. 

Há uma crítica pelo lado de Sylvia a respeito do roteiro ser "arrastado" e alguns disseram também de suas "barrigas" ou "buracos" narrativos. Diante dessas críticas fico pensando o que diriam sobre os filmes do Rohmer, deve ser o ápice do que consideram buracos narrativos (se bem que Rohmer é cult, francês e tal... Enfim...). Em "Meu nome..." grande parte do filme é dedicada a jovens cheirando cocaína, e só. E isso é fantástico porque é a sensação do personagem, de quem é João. Claro, tavez os "sábios" quisessem algo mais "rico" dentro dessa trama, de repente crise com a mulher, policiais batendo, crises morais, sei lá, mas não, isso não cabe no personagem. O barato do filme está justamente no fato de, na vida de João, tudo se resumir à droga. Não cabia mais nada e aquilo é o suficiente. É interessante um personagem onde a cocaina é presente 24 horas por dia e ele não é um assassino, nem alguém sem cérebro, nem morre tragicamente. Pelo contrário, se diverte.

Ficou claro o que está em jogo aqui, não? Uma crítica que decide falar "poucas e boas" de um filme simplesmente porque ele não atendeu às suas expectativas. Não é dada sequer chance ao filme de se explicar, dizer a que veio, não. É quase uma militância "não foi desse jeito não presta". O intelectual se põe, então, no Olimpo da cultura onde ele é mil vezes superior à obra. Um autoritarismo muito típico dos nossos tempos. 




Para um texo desses a melhor coisa, realmente, é rever a diálogo de Annie Hall (noivo neurótico, noiva nervosa) que parece ser referência para Sylvia Colombo. Infelizmente não achei o trecho com legendas ou dublado em português.

If life were only like this...
cae


Friday, January 25, 2008

Gangsters

Holywood tem algumas fixações, isto faz parte de uma certa obsessão da cultura norte-americana por explicar a si própria e ao seu país. Por isso fazem sucesso tantos filmes patrióticos, épicos e históricos, guerra, política, questões étnicas e uma das grandes fontes de filmes maravilhosos: gangsters. Talvez pelo drible de um sistema e de uma sociedade suspostamente tão consistente, a máfia é uma alternativa ao (e ao mesmo tempo uma parte do) American Dream.


Agora vejam isso:
Notam uma certa semelhança? Com algumas mudanças no estilo que 25 anos de distância tornam inevitáveis, o que primeiro nos grita é a composição do preto-branco, depois os detalhes vermelhos e enfim a prova irrefutável de que isso passa longe de uma coincidência: arma na mão direita, mão esquerda fechada, cabeça virada para a esquerda.

Então, depois dos italianos, cubanos, irlandeses e chineses, os negros ganharam o seu filme de máfia. E este filme lança este cartaz para dizer "Olha, eu quero American Gangster ao lado de Scarface e eu não vou ter vergonha disso. E também The Godfather, The Departed e outros." E talvez Ridley Scott, responsável por este novo gangster e por alguns outros blockbusters notáveis desta época, esteja dizendo que quer se sentar com Brian de Palma, Coppola, Scorsese, quem sabe?

Curioso?

É, essa coisa toda contém em si milhares de incongruências, mas sinceramente eu não estou interessado nelas no momento. Se alguém quiser discutí-las, fique à vontade. Mas aqui vai um pequeno teaser: Em Scarface, Al Pacino lidera a máfia dos imigrantes latinos nos EUA e a primeiríssima cena de American Gangster mostra Frank Lucas (Denzel Washington) literalmente incendiando um latino que provavelmente fez besteira no crime. Falo mais do filme depois que assistir mais uma vez.


Friday, January 18, 2008

Reconstruction

O filme é Reconstruction, do dinamarquês Christoffer Boe, de 2003. Não sei exatamente o que escrever sobre ele, mas tenho certeza de que alguma coisa precisa ser escrita. Começa com um ilusionista brincando de levitar o seu cigarro. Ele nos apresenta, nos dá alguma pista, alguma dica, de como encarar o que está para ser visto:


"É assim que sempre termina, um pouco de magia, um pouco de fumaça no ar. Algo flutuando. Mas não funciona sem um empurrão necessário. Um pouco de risadas, um homem, uma mulher bonita. E Amor. Vamos remcoeçar. No começo, um homem sozinho, não, ele não está sozinho, ainda. Esse é o primeiro passo, o homem. Logo vêm as risadas, a mulher e o amor. (...) É só um filme, é tudo construção, mesmo assim dói."







Se você tem a chance ou a intenção de ver este filme, sugiro parar de ler por aqui: o que vou escrever adiante pode atrapalhar um pouco a sua experiência. Eu não gostaria de ter lido isso antes de assistir o filme.


São dados a conhecer logo no inicio os quatro personagens principais desta trama, Auguste, um escritor rico e famoso, que se apresenta como narrador do filme, Aimée, sua bela esposa, Alex, um fotógrafo, e Simone, sua namorada - "eles não são casados", diz o escritor ao apresentá-los -. Auguste está criando um novo livro onde Alex e Aimée se apaixonarão. "Já sei como eles vão se conhecer", ele a diz.


O que parece é que vemos algumas vezes o casal se conhecendo e se apaixonando, como versões do manuscrito de Auguste. Só que em uma das alterações, como numa vingança do escritor pela traição da sua amada, Alex, o personagem, não se esquece da versão anterior. Ele procura amigos, família, namorada, ninguém tem a menor lembrança de quem ele é, nem mesmo o seu apartamento existe.


As camadas de realidades, escritor, ficção, personagens, se misturam magicamente, e com muita beleza. A frieza de Kopenhagen e o calorzinho de um café, algumas sequências fantásticas de imagens sobrepostas e carregadas de efeitos de montagem e tempo, diálogos de uma passagem perfeitamente conectados com imagens de outra, e uma única cena de sexo feita magnificamente em uma sequência de stills, alternando com imagens em movimento.


É um filme de amor, de fantasia, de ficção, que explora os limites da construção fílmica e narrativa, da construção de universos e do drama de um personagem que precisa se reconhecer como tal para realizar o seu ser, as suas paixões e o seu sofrimento. É só filme, é tudo construção, mas mesmo assim dói.


Friday, January 04, 2008

Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia

Ao longo do tempo tive a oportunidade de ler apenas 3 biografias. Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva, quando ainda estava na oitava série; Tolkien: uma biografia, de Michael White, por volta de 2002, quando a febre de O Senhor dos Anéis tomou conta de mim e cheguei até a aprender élfico; e Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia, de Nelson Motta, que ganhei de amigo secreto neste Natal e terminei de ler há pouco. Gostei de todas, mas a de Tim me tocou mais, talvez por já ser grande fã de seus discos e suas histórias.

Marcelo Tas, em um de seus últimos post de 2007 (blogdotas.com.br) comentou o livro. Postou também dois vídeos, um acima e outro abaixo do texto, que reproduzo abaixo. Os vídeos podem ser vistos no post original clicando aqui.

Li entre o panetone do Natal e o pré-reveilon a maravilhosa biografia do mestre da black music brasileira, o inventor do samba-soul, grande filósofo popular da Zona Norte carioca, escrita por Nelson Motta. Se fosse você, não entrava em zero oito sem ele, o síndico Tim Maia.

Lá você vai conhecer um pouco mais do Brasil de verdade, aquele do mercado paralelo, e da história do mito e de cada uma das figuras que ele grita no meio das músicas, como Paulinho e Chumbinho, nessa gravação do Ensaio, da TV Cultura. Parabéns, Nelsinho, outro golaçao!

Aqui abaixo, mais uma palhinha do Tim no YouTube.

Concordo. O livro é muito bom. Tim era não só um cantor fantástico, como também uma figura única. E o livro retrata isso muito bem. Conta sua vida desde pequeno, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde cresceu e ensinou Erasmo, Roberto Carlos e Jorge Ben a tocar violão. Sua ida aos EUA e sua volta deportado. Sua luta para entrar no mercado musical brasileiro. As histórias hilariantes dos grandes porres de maconha, pó e whisk, que ele costumava chamar de Triatlon e que quase sempre o faziam se atrasar ou até mesmo faltar a shows. Segue toda a trajetória até sua morte em 1998, aos 55 anos. No entanto, mesmo tendo adorado cada loucura que Tim cometeu e que Nelson Motta contou, terminei o livro com a sensação de que foi lançado as pressas, sem uma última revisão.

***

No decorrer do livro Nelson Motta utiliza um recurso estilístico interessante para tentar reproduzir as falas de Tim, que muitas vezes chamava as pessoas por nome e sobrenome. Abaixo, um trecho que ilustra tal recurso:

""Ô Tibériogaspar, ele colocou os convidados dele na primeira filha, todo mundo bonito, perfume francês, dentes lindos, maravilhosos, cascata de camarão, champanhe e o caralho a quatro. E o meu pessoal ele botou lá atrás, perto da cozinha, tomando cerveja quente. Eu achei isso uma sacanagem e vou à forra, esse filho-da-puta vai me pagar. Vai no sábado."". (p.224-225).

Quatro parágrafos acima Tim convidou Tibério para seu show, mas avisou:

""Tibério Gaspar, eu vou estrear lá no Scala e você está convidado. Mas não vai no dia da estréia não, porque os convites que o Recarey me deu são para a minha família, que é enorme. Você vai na sexta, tá?"". (p.224).

Bem, com os acontecimentos da estréia, Tim, não foi ao show da sexta para se vingar, por isso mudou o convite de Tibério. No sábado, Recarey, dono do Scala, foi obrigado a dividir, junto com de com seus convidados finos e elegantes, a primeira fila com os convidados de Tim, que "havia distribuído seus convites entre faxineiros, garagistas, mendigos e flanelinhas que encontrara na vizinhança do Scala". (p.226).

Nessa história curta do livro o recurso estilístico de unir nome ao sobrenome sem a letra maiúscula no início do último é esquecido. E este não é o único caso. Em outras vezes, tanto antes quanto depois desse trecho, a mesma coisa ocorre e a fala de Tim é modificada. O que me levou a questionar se estas mudanças são propositais, com a fala de Tim realmente se modificando por algum motivo emocional ou algo do gênero, ou se foi uma deslize da revisão. Acredito mais na segunda opção, já que com esse recurso as falas ficam muito mais Timaiadas.

***

Outros deslizes também parecem ter passado:

"E ficou mais feliz ainda, em 1992, quando Marisa Monte lançou uma sensacional gravação de "Não quero dinheiro" e a transformou em um dos grandes sucessos do ano. Na verdade, nem era uma faixa do disco, e sim um trecho do DVD ao vivo de Marisa, que virou um espetacular sucesso de rádio." (p.312).

"No dia 8 de março de 1988, Tim sai do palco e não volta mais. Desta vez, o show não pôde continuar." (p.389).

No caso do primeiro trecho me estranha o fato de em 92 já existir um DVD da Marisa Monte. Não sei se a informação procede, mas me parece que essa tecnologia não estava disponível na época. Posso estar errado... O segundo é a legenda da última foto do livro, com Tim de cabeça abaixada e as duas mãos unidas, como que agradecendo o público (Lembram do Miguel Falabela no final do Video Show? Então, igual.). Seguindo a data apresentada no texto julgo que a foto seja de 88, de um show no dia 8 de março. Por coincidência Tim viria a passar mal, e morrer 7 dias após, justamente em um show uma década depois, no mesmo dia. Caso não seja uma coincidência trata-se de um erro e a data real seria 1998. Acredito mais na segunda possibilidade, já que a foto fecha o livro. Provavelmente a foto era de 88 e as datas foram confundidas quando a legenda foi escrita.

Outro fato que chama atenção no livro está em um trecho que só fui capaz de relocalizar graças a um usuário do Orkut:

Na volta de Brasília, Tim avisou que iriam para Atibaia, no litoral paulista, de carro, para um show no sábado e outro no domingo.” (p.327).

Novamente pode ser que eu esteja errado, mas Atibaia está a no mínimo 88 km do litoral paulista, em linha reta. Mais precisamente da cidade de Cubatão. Bom, Atibaia pode também ser o nome de uma praia muito da chique no litoral paulista, ou mesmo uma bem popular, que eu desconheço...

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Além dos eventuais deslizes de revisão, minha única crítica real ou conteúdo de fato do livro fica por conta da falta de clareza em torno de determinados assuntos. Em especial a crítica constante de Tim Maia a TV Globo. Ele sempre mete o pau, mas o porquê não é apresentado. Sim, sabemos que a Globo tem muito poder e é capaz de fazer quem quiser um tremendo sucesso, o Nelson Motta fala isso no livro, de uma forma ou de outra, mas senti falta de mais argumentos nesse sentido. Fica parecendo que o Tim falava só por falar em determinadas partes. As vezes era isso mesmo, vai saber?!

Exitem também certas confusões quanto as datas no decorrer da narrativa, principalmente quando o Prêmio Sharp era tratado. Não dava pra entender se foi só um, dois, três... Se o discurso de um capítulo é a continuação do outro, no capítulo anterior. E esses problemas de estruturação da narrativa me parecem mais evidentes no final do livro, do terceiro quarto pra frente, digamos. Uma certa pressa em contar as coisas que pode ter deixado tudo mais confuso e com menos claro. Mas como eu li muita coisa de madrugada, pode ter sido vista cansada mesmo...

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Problemas a parte, o livro é muito bom, não por sua qualidade literária, mas pela vida alucinada que Tim levou em pouco mais 30 anos de carreira(s). Bebeu muito, fumou muitíssimo, cheirou toneladas e foi um dos melhores clientes das prostitutas cariocas. Não compareceu a shows; ou compareceu e não estava em condições de cantar nada; ou estava em condições e não cantou porque uma "Dona Maria" pediu para ele parar de reclamar do som e cantar logo e ouviu que se quisesse ouvir ele cantar que comprasse seu disco, e saiu do palco; ou compareceu e fez shows memoráveis, engraçados e com um som impecável. Mas o que o livro mais deixa é uma vontade louca de ter feito parte dessa história. Seja pagando para não assistir um de seus shows ou participando de um de seus Triatlons. No entanto, caso queira comprar, espere a segunda edição, devidamente revisada...